Afinal, The Wall fala sobre o quê?
Introdução, Talkei?
Com a polêmica dos show de Roger Waters em 2018, apareceram os especialistas em história e política internacional surpresos que Roger Waters, membro fundador do Pink Floyd, não estava falando de construção civil e ainda por cima é um comunista. Malditos comunistas!
Obviamente que toda obra pode ser interpretada de diversas maneiras. The Wall é uma obra profunda, mas ele tem uma linha interessante de história e que pode ser interpretada de forma correta, desde que você pelo menos entenda o que está sendo dito. Não pretendo com este texto fazer um tratado sobre tudo o que o disco tem a oferecer. Vá ouvir, vá ver o filme.
Aqui estão os links: Spotify / Deezer / Kboing
Contexto histórico (a.k.a. doutrinação)
Se continuou o texto daqui, simbora que vai ser um pouco longo.
O álbum foi lançado em 1979, época em que o mundo atravessava a guerra fria. Estados Unidos de um lado, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) do outro. Armadas até onde podiam, com bombas nucleares e tudo. Havia um enfrentamento de visões de mundo e ambos precisavam demonstrar o tamanho do seu poder. De um lado, o capitalismo voraz e do outro o estado dominando tudo e todos. No meio disto tudo estava o planeta todo, acuado, uma vez que, caso algum destes jogadores resolvessem apertar o botão vermelho, todo mundo morria.
Nosso querido baixista-compositor já tinha tratado de problemas do capitalismo em The Dark Side of The Moon, Wish You Were Here e Animals. É muito óbvio que ele não criticaria o sistema soviético, ele vivia na Inglaterra, o país que é pai dos Estados Unidos. O Reino Unido dominou o mundo por 300 anos à base da violência. Roger se preocupava com o que ele vivia. Ele não tinha lugar de fala pra criticar o que tinha do outro lado da Cortina de Ferro.
O Termo Cortina de Ferro aliás foi cunhado por Winston Churchill, primeiro ministro inglês, no final da Segunda-Guerra mundial em 1946. Era uma linha imaginária que dividia a Europa Oriental, de domínio soviético, e a ocidental, de domínio… de quem mesmo?
Rogério Águas, o Richard Gere só que feio
Roger Waters nasceu em 1943. Ele não conheceu seu avô, George Henry Waters, que estava enterrado na Itália, morto na primeira guerra mundial.
Seu pai, Eric Fletcher Waters, embora tivesse um ideário comunista e ser um pacifista, foi chamado pra servir na Segunda Guerra Mundial e foi dado com o termo M.I.A., missed in action. E adivinha onde? Sim, na Itália.
Roger Waters tinha apenas 3 meses quando seu pai morreu. Sua mãe caiu em depressão e não conseguia cuidar do filho como uma mãe solteira deveria fazer. Ela o deixava um tanto quanto abandonado em determinados momentos e em outros ela era super protetora. Ele eventualmente estaria deprimido também e isto o persegue o resto da vida.
Roger Waters frequentou escolas muito rígidas, como tudo era na época. Os professores humilhavam as crianças. Era permitido que dessem punição física e não raro as crianças apanhavam. Toda forma de expressão fora do esperado era severamente punida.
Na adolescência, se sentia completamente sozinho. Passou a usar drogas pra tentar fugir da própria atordoante realidade. E tinha aquele lance de querer procurar alguém pra namorar, mas não sabia como lidar com isso. E tinha a vontade de sexo. E tinha a sombra de uma guerra que ele poderia um dia servir, meu deus, a bomba! E tinha a culpa dos pecados que cometia. E tinham uns amigos com quem ele montou uma banda e começou a fazer sucesso. E tinham muitas drogas. E tinha um amigo, Syd Barret, que se perdeu nisso tudo e foi internado num manicômio*. E tinha a fama. E tinha mais droga. Rogerinho se fechou em seu próprio mundo pra se proteger e qualquer tentativa de conversa com ele foi, por muito tempo, pintar um alvo na própria cara. Ele ia te atacar.
A Parede
O disco The Wall é quase auto-biográfico.
Nele, o personagem se chama Pinky e a vida dele é um enorme paralelo com a vida de Roger Waters. Provavelmente o nome foi dado depois que um executivo da gravadora onde trabalhavam perguntou – by the way which one’s Pink? – A propósito, quem de vocês é o Pink? Esta frase ficou eternizada em Have a Cigar.
Na história, Pinky sofre na escola, sofre abandono da mãe, sofre com a super proteção dela, tem medo da bomba nuclear, se sente vazio. Procura sexo nas prostitutas, tenta entender o que se passa dentro dele mesmo, toda aquela violência que queria liberar, toda aquela angústia, aquele sofrimento todo… Pinky é abandonado pela namorada e tem um breakdown, um ataque nervoso. É neste momento que Pinky constrói ao redor de si o alegórico muro que o separa do resto do mundo. Pra se proteger, mas também acaba por se isolar.
Pinky pensa em suicídio, tenta achar as pessoas que afastou. Ele clama pelo fim da guerra pra que as crianças não sejam como ele. Pinky tem uma overdose, e ainda assim é abusado no trabalho. Ele entra num processo auto destrutivo e chega ao fundo do poço. Na loucura, Pinky passa por um julgamento de si próprio e todas as personagens da vida dele, que estiveram com ele o tempo todo. Não eram mais as pessoas, mas as caricaturas delas. O professor, a mãe, a morte. Todos os fantasmas que rondavam sua cabeça o levam à loucura. Quando nada mais faz sentido, Pinky entende que é a hora de ele sair dos muros que criou ao redor de si, mas talvez seja tarde demais.
Tudo isto é enfeitado com diversos símbolos que você irá encontrar no disco e no filme. Vendo o filme vai ficar claro os papéis das flores, dos martelos , os balões e o que faz os fãs do Pink Floyd fecharem as mãos e cruzarem os pulsos no topo da cabeça, fazendo um X. E vai ficar muito claro que o Fascismo, que Waters tanto critica, tem papel fundamental na trajetória do personagem.
The Wall fala sobre depressão, culpa, guerra, medo, abandono, confusão mental, abuso de drogas, alienação e loucura. Fala de mais um monte de coisas, contadas por um personagem que é o retrato de uma vítima da guerra.
Roger Waters tem motivos de sobra pra odiar todas as guerras. Ele tem motivos pra odiar qualquer um que incite a violência. Neste quesito, ele tem lugar de fala.
P.S.: É sério, vá ouvir o disco, eu já te passei os links.
p.s.2: Escrito em 30/09/2019
Syd Barret na verdade não foi internado. Esta informação me foi passada a vida toda e dei fé. O Robert Souza Lages comentou neste texto e me fez pesquisar a respeito. Agradeço imensamente. Este tipo de coisas faz a gente lembrar que é preciso pesquisar frase por frase antes de afirmar aqui. A gente tenta, mas nem sempre é possível e aqui foi um erro. Syd na verdade passou um bom tempo muito mal em hotéis e foi pra casa da mãe.